segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Nasceu o Fruto da Pitangueira

O Fruto da Pitangueira nasceu das minhas mais profundas lembranças.

Eu morei na Rua Alfa, número 226-A, no bairro Moinho Velho, em São Paulo, durante dez anos. Posso afirmar, com certeza, que foi a pior casa em que já vivi. Muito antiga, tinha sido a primeira construção que meu avô fez para viver com a família, assim que vieram de Portugal, nos idos de 1946.

Uns quase trinta anos depois, minha mãe já adulta, casada e com filhas, precisou da casa para nela morar comigo e com meu pai. A casa havia sido dividida ao meio, literalmente, de modo que havia se tornado gêmea de uma outra igualzinha, porém espelhada. E isso fez com que a casa tivesse um estilo esdrúxulo, tipo corredor, explico: um quintal à frente, com alpendre na entrada pela sala, seguida por um quarto, seguida pela cozinha, com o banheiro ao fundo, tudo em linha reta, encadeado, e um grande corredor externo lateral. 

Para esse corredor, pendiam os galhos da Pitangueira da Dona Aurora, a vizinha de fundos, da outra rua, já que a casa era de esquina. E, debaixo desses galhos, passei dez anos de minha infância e adolescência, dos 6 aos 16 anos, saboreando "O Fruto da Pitangueira"...

Apesar de a casa ter sido horrível (e me lembro muito bem, porque antes dessa já havia mudado umas quantas vezes de casa, bairro e cidade e aos seis anos já tinha uma excelente memória, inclusive dos dois anos passados em Barretos, cidade de meu pai e dos De Santis da famíla), bem, apesar de adorar frisar que a casa era e foi realmente horrível, rsrsrsrsr, tinha lá uns encantos diferentes: ao final do corredor, na direção de quem iria para a rua, do lado direito se abria uma espécie de galpão, fechado com treliça de madeira pintada em tom de verde água que guardava...o que mesmo? Era um espaço cimentado, cimento queimado, piso muito liso, no qual eu brincava com todos os meus pertences e imaginação. E, anexo à casa, havia o quintal do meu bisavô, que morreu logo em seguida à nossa mudança, e passou a ser o quintal do meu avô. Esse espaço, sim, era um reino encantado para mim. Um espaço verde, de mato, onde ele cuidava de uns patos, galinhas, uns coelhos e uns curiosos pés de fumo que nem sei pra que serviam, se ninguém fumava naquela época. 

As crianças da família se divertiam com os coelhinhos, patinhos e pintinhos pequenos e lindos e, claro, arrancando folhas e flores para nossas brincadeiras, enquanto meu avô retirava ovos para as abomináveis gemadas que tinham poderes fortificantes. E esse foi o único encanto da casa: o seu externo.

À sombra da pitangueira, naquele corredor, durante milhares de vezes, eu e minha cachorrinha nos sentamos para brincar e conversar. Eu me lembro bem! E talvez, ou muito certamente, foi saboreando o fruto da pitangueira que adquiri o hábito de falar sozinha, cultivando as palavras e as ideias, visto que meus pais adultos não eram muito do tipo de brincar e dar vez e voz às crianças, além de não ter sido criada junto com a minha irmã, por outro esquisitíssimo costume da época, o de deixar os filhos primogênitos aos cuidados dos avós, quase como que a lhes ceder uma criança de companhia.

Não falo isso com mágoa e nem terei problemas com minha mãe, que já se acostumou com a ideia de ter sido constantemente questionada e bombardeada para que nos explicasse seus motivos. Ela sempre respondeu a mim e à minha irmã que eram costumes de uma outra época, pois como minha irmã havia nascido no inverno de São Paulo, realmente rigoroso naqueles tempos, quando minha mãe ia buscá-la na casa dos meus avós, eles diziam: "deixa a menina, que já está a dormir", e a menina ficava... fora isso, meu avô era louco com crianças, principalmente com a primeira neta. E a menina ficou para quase sempre.

Mas como estava contando inicialmente, debaixo do galho pendente daquela árvore é que nasceu a minha imaginação e é por isso que esta história tem este título, ou mote, não sei bem, que marcou meus bons e maus momentos ao longo de dez anos de minha jovem vida e, de certa forma O Fruto da Pitangueira, este texto e este blog, tem o tom destas memórias, que se tornaram fantasias e sonhos e me ajudaram a saborear o meu mundo de forma tão tropical e exótica, e permitiram que eu voasse para bem longe dali, anos depois, acumulando todos os tipos de sensações para que futuramente eu as pudesse transformar em palavras.

A pitanga, palavra que em Tupi antigo, redundantemente, significa fruto redondo e vermelho, é uma planta nativa da Mata Atlântica brasileira, rica em vitamina C e cálcio, exuberante no seu aroma e cor, e que atrai pássaros e insetos silvestres, além, é claro, de ter atraído para junto da Pitangueira da Dona Aurora aquela menina que até hoje sente o aroma  daquele fruto e hoje está aqui para escrever.

Eu, realmente, com todas as minhas forças de menina, odiava aquela casa, a vida naquela casa, "chorei muitas das minhas pitangas" naquela casa, mas também aprendi a amar as pitangas, contrariando o dito popular.

E o tempo passou, eu me mudei umas tantas outras vezes, de casas, bairros, cidades, e senti vontade de escrever. Simples assim. Como uma pitanga cheirosa e vistosa.

3 comentários:

  1. Muito bom o texto Cilene, de ler num fôlego só. Adoro histórias da vida.
    Seu texto é fluído e muito gostoso. Vou ficar refém a espera dos próximos. Parabéns!

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