Não de verdade. Não sempre. Mas por um período pequeno de sua vida, minha prima exerceu o ofício de escritora. Narradora epistolar, mais precisamente.
Várias décadas atrás (eu nem tinha cinco anos) meus pais e eu nos mudamos para uma cidade do interior. Durante doze meses seguidos, semana após semana, minha prima nos escreveu cartas.
Recentemente, minha mãe, ao "destralhar" deparou-se com envelopes esparsos, daqueles, verde-amarelos, cujo remetente ainda constava a antiga Rua Jardim Tropical... ainda rua de terra, na qual o carteiro nem ia.
Escrever naquela época dava um trabalhão danado... as pessoas tinham de ir até os Correios, levar e buscar suas cartas e encomendas. Pois bem, em vez de "destralhar" aquilo tudo, minha mãe juntou uma a uma essas cartas e colocou-as em ordem. Surpresa: o relato familiar de um ano inteirinho.
Na ocasião, a família toda não passava de umas 15 ou 20 pessoas... imigrantes que somos, justapostos uns aos outros, sempre moramos juntos, vizinhos. E o fato de três de nós se afastarem significou alguma coisa. Bem, pelo menos gosto de pensar assim. Os motivos dessa mudança? Nunca soube. Mas isso já é tecido para outra história... e nem importa mais.
O caso é que minha prima escreveu. Sua narrativa é clara, límpida, objetiva e direta. Sem nenhuma nem qualquer intenção, esses textos, ora datilografados ora na sua letrinha miúda de adolescente dos anos 70, relatam fatos tão corriqueiros quanto importantes.... para mim...
Minha prima escritora contava as coisas que tinham ficado: como tinha sido seu dia na escola, o que iria comer no almoço, quem havia ficado doente, por quantas horas o telefone havia ficado mudo, qual era a novela da época, qual parente distante havia se mudado, qual a cor do casaco novo, e mesmo expressões que até hoje ela usa, assim tipo:"paciência!", enfim, tudo o que lhe viesse à mente e mais tudo quanto meus avós, tios e primos lhe pedissem para contar. Fatos corriqueiros, dotados, porém, de uma importância visceral.
Minha avó devia ser muito ocupada, pois sempre mandava lembranças e dizia que não tinha tempo. Meu avô era incumbido de levar as cartas e ficava pressionando para que ela acabasse de escrever logo... punha seu fusca branco a funcionar e lá ia o BB7012... fazendo fumaça, levando histórias.
Quando eu me deparei com esse pequeno tesouro íntimo, ficou na minha cabeça uma névoa. Eu, que sempre me senti "tantas vezes reles, tantas vezes vil", assim como o Pessoa; eu, "que tenho sido uma fraude em tudo", também assim como o Pessoa, eu, que me queria escritora desde sempre e não o fui... por que esperar mais? Quais propósitos eu espero? Quanto mais de mim eu vou ter que ler em vez de escrever? Por isso - e uns outros tantos fatos também - resolvi continuar. Resolvi assumir agora essa escrita, afinal, venho de uma família de escritores...
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